Por Juliana Sada - Para o site www.rodrigovianna.com.br
Não terás medo (…) da peste que anda na escuridão, nem da
mortandade que assola ao meio-dia. Mil cairão ao teu lado, e dez mil à tua
direita, mas não chegará a ti.
Os versos do salmo 91 foram repetidos inúmeras vezes por
Sidney Salles naquela sexta-feira, 02 de outubro de 1992. Ele estava no quinto
andar do pavilhão 9 da Casa de Detenção quando a Polícia Militar entrou e
perpetuaria o maior massacre do sistema carcerário
brasileiro. Foram 111 detentos assassinados pela PM após o início de uma
rebelião. Com o olhar firme, Sidney relembra que carregou cerca de 35 corpos,
obedecendo às ordens dos policiais. “Eu vi uma poça de sangue e fiquei com medo
de pisar, não por medo do HIV, e sim porque poderia ser sangue de um
conhecido”. Quando tentava entrar em uma cela, encontrou um policial que lhe
propôs um desafio macabro. Com um molho de chaves na mão e a cela trancada por
um cadeado, disse: “vou pegar uma chave, se abrir, você pode entrar, se não, a
gente te executa”. Sidney voltou a recitar mentalmente o salmo 91, que havia
lido numa carta enviada por sua mãe na semana anterior. “Ele pegou a chave e
fez ‘clac’, a porta abriu”, relembra Sidney.
O Massacre do Carandiru já virou filme, livro, seriado e
músicas. A antiga Casa de Detenção foi quase inteiramente demolida e o governo
já teve tempo de transformar o local num parque, com biblioteca e escolas
técnicas. Só não houve tempo para que os agentes responsáveis pelo massacre
fossem punidos. Ao contrário, os policiais envolvidos no massacre seguem nas
ruas e sendo premiados pelo governo, com cargos de comando. O atual comandante
da Rota (unidade de elite da PM), assim como seu antecessor, é réu no processo
do Carandiru. Salvador Modestio Madia, que deixou o comando nesta semana, é
acusado diretamente por 78 das 111 mortes. Já o atual comandante, Nivaldo César
Restivo, responde por lesão corporal grave.
Não só apenas os indivíduos diretamente envolvidos seguem na
ativa como a estrutura repressiva do Estado segue fortalecida. O padre Valdir
Silveira, coordenador da Pastoral Carcerária, chama a atenção para a
necessidade de mudanças estruturais. “Ou você põe no banco de réus quem
comanda, ou você vai culpar apenas quem está na ponta”, avalia Silveira.
A violência policial pode ser medida pelos números
alarmantes de mortes em supostos confrontos. A letalidade da Polícia Militar
paulista está entre as mais altas do
mundo. De 2006 a 2010, foram 2.262 mortes em supostos confronto com a PM. Nos
primeiros cinco meses deste ano, somente a Rota matou 45 pessoas, 104% a mais
que em 2010. Apesar de corresponder apenas a menos de 1% do efetivo, a Rota
responde por 20% das mortes cometidas pela Polícia.
Já dentro das prisões os massacres agora ocorrem à conta gotas. Entre 1999
e 2006, foram cerca de 3.200 mortes dentro das penitenciárias do estado de São
Paulo, uma média de 457 por ano. Fora das prisões, os massacres também seguem.
Em maio de 2006, após ataques de um grupo criminoso na cidade de São Paulo,
cerca de 505 civis foram assassinados na cidade. O perfil dos mortos era
similar: jovem, pardo, pobre e morador da periferia. O episódio ficou conhecido
como “Crimes de Maio”.
Débora Maria da Silva teve um filho assassinado em 2006 e
hoje coordena o grupo Mães de Maio, que luta em busca da verdade e por justiça.
Seis anos após a morte de seu filho, Débora conseguiu a exumação do corpo para
que se investigasse as causas de sua morte. Para Débora, o Estado foi e segue
sendo omisso no caso, além de tentar tratar o caso como “passado”. O Mães de Maio
tenta criar um memorial às vítimas mas sem sucesso: “o governo não quer lembrar
dessa mazela”, critica Débora.
O direito à memória também está em pauta no caso do Massacre
do Carandiru. O parque que foi construído no local da penitenciária não possui qualquer
indicação do que ocorreu no local. O padre Silveira defende que haja ao menos
uma placa no local para “provocar quem vai no parque: aqui é um cemitério”. O
padre propõe que o dia 2 de outubro seja considerado o dia de luta contra os
massacres.
Hoje, numa cadeira de rodas e como pastor evangélico, Sidney
Salles afirma ter perdoado os autores do massacre mas tampouco acredita que
possa haver justiça. “Os massacres continuarão acontecendo constantemente.
Enquanto não acabar os massacres, a periferia vai sofrer”. Débora Maria da
Silva concorda e pede punição aos responsáveis: “nós queremos viver, nós
queremos justiça. Não há paz e não haverá paz, enquanto não houver justiça. A
ditadura segue viva”.
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