Confiram excelente matéria de José Francisco Neto e Jorge
Américo para o Brasil de Fato!
Pavilhões caíram, mas muralha invisível esconde história do
massacre
“Incinerei muitas
coisas lá do Carandiru depois da implosão. E foi até gente morta dentro do
caminhão de lixo”, declara ex-funcionário da Limpurb
27/09/2012
Jorge Américo e José Francisco Neto - da Reportagem
Por volta das 19 horas do dia 2 de outubro de 1992, véspera
das eleições municipais, uma viatura da Polícia Militar deixa as dependências
da Casa de Detenção do Carandiru, no bairro paulistano de Santana. O veículo
segue rumo ao hospital, carregando oito corpos perfurados com tiros de
metralhadoras, fuzis e pistolas. Na sequência, outros 103 corpos deixam a
unidade prisional. Ao todo, 111 mortos – segundo a contagem oficial. Todos
detentos do pavilhão 9. Desses, 51 ainda não haviam completado 25 anos de idade.
Ainda hoje, passados 20 anos do episódio que ficou
mundialmente conhecido como o Massacre do Carandiru, suspeitas não confirmadas
sugerem um número de vítimas maior que o divulgado pelas autoridades.
“Incinerei muitas coisas lá do Carandiru depois da implosão. E foi até gente
morta dentro do caminhão de lixo.” A declaração é de V.G.V.,
ex-funcionário da Limpurb (órgão gerenciador dos serviços de limpeza urbana
prestados na cidade de São Paulo).
V.G.V. sempre viveu no bairro de Santana. Uma história de 60
anos. Com os vizinhos e colegas de trabalho compartilhou
incontáveis notícias extra-oficiais que não puderam ser contidas pelas
muralhas. Talvez a mais intrigante seja a suposta existência de uma vala
clandestina. “Tinha um cemitério debaixo de um porão, teve muita morte. Tinha
um cemitério clandestino no pavilhão 9. Quando morria gente, eles jogavam lá
pra baixo”, recorda. A presença da Casa de Detenção causava certo incômodo aos
moradores do bairro, mas a paisagem começou a mudar em 2002, quando os prédios
do complexo foram demolidos para dar lugar ao Parque da Juventude. “Aqui ficou
um lugar bom, porque era muito pesado. A vizinhança via o presídio como um
negócio abandonado, estranho. Por dentro era tudo estragado, derrubado. As
pessoas muito maltratadas”, relata V.G.V., enquanto faz sua caminhada matinal
sobre um extenso gramado rodeado de árvores que parecem aguardar ansiosas pelo
fim do inverno para recuperar a folhagem natural.
Parque da Juventude
O parque foi inaugurado em 2003, mas as obras foram
finalizadas em 2010. Uma área de 240 mil metros quadrados abriga um complexo
poliesportivo, uma biblioteca, uma considerável reserva de Mata Atlântica, entre outros atrativos.
Do antigo Carandiru, sobrou um trecho de muralha e ruínas de celas. Os
pavilhões 4 e 7 foram mantidos integralmente. Neles estão instaladas duas
Escolas Técnicas (Etecs).
Thaire Cristina, 17 anos, ainda não havia nascido quando
ocorreu o massacre. Moradora da cidade vizinha de Guarulhos, estuda dança no
prédio onde funcionou o antigo Pavilhão 4. Ela descobriu o curso pela internet,
“sabia que era um presídio”, mas diz nunca ter se aprofundado no assunto. Seu
depoimento indica que se depender da Direção da escola, a história será
apagada. “Nunca ninguém aqui falou do que aconteceu. Todos os professores ficam
no palco no primeiro dia de aula, falam algumas regras da escola, o que pode e
o que não pode, mas nunca ninguém tocou no assunto [do massacre]”.
Embora a implosão dos pavilhões tenha durado menos de 10
segundos, não é tarefa fácil esconder
tantos anos de história. Oficialmente denominada Casa de Detenção de São Paulo,
a penitenciária do Carandiru foi inaugurada em 1920 e ampliada em 1956, com
capacidade de oferecer 3,4 mil vagas. Chegou a conter mais de 8 mil presos, o
que lhe rendeu o título de maior presídio da América Latina. Quando encerrou as
atividades, a penitenciária tinha população semelhante ou superior à de 259 dos
645 municípios paulistas.
Ubiratan
A invasão do Carandiru foi comandada pelo coronel Ubiratan
Guimarães, depois de ter recebido autorização do secretário de Segurança
Pública – Pedro Franco de Campos – para agir deliberadamente. Este havia
consultado o então governador Luiz Antônio Fleury por telefone, que concedeu
poder de decisão ao policial. A Comissão que investigou os excessos cometidos
naquele 2 de outubro conclui que não houve negociação e “os PMs dispararam
contra os presos com metralhadoras, fuzis e pistolas automáticas, visando principalmente
a cabeça e o tórax”.
Entre os envolvidos na operação, apenas o coronel Ubiratan
foi a julgamento, sendo responsabilizado por 111 mortes e cinco tentativas de
homicídio. Foi condenado a 632 anos de prisão em regime fechado. Por ser réu
primário e ter endereço fixo, o coronel conseguiu recorrer da sentença em
liberdade. Ironicamente, o pavilhão 9 era específico para réus primários. Cerca
de 80% das vítimas do massacre esperavam por uma sentença definitiva. Ainda não
haviam sido condenadas pela Justiça.
Mais tarde, a sentença foi anulada. Ubiratan elegeu-se
deputado estadual. Em setembro de 2006 foi encontrado morto em seu apartamento,
com um tiro no abdômen. Ciumenta, a namorada teria matado “por amor’.
Para o defensor público Antônio Maffezoli, é difícil
identificar uma responsabilidade penal das demais autoridades, mas
“inequivocamente, responsabilidade civil teria. Todos eles, porque fazia parte
da competência do governador e do secretário a gestão da Segurança como um
todo. E aí a sua própria culpa por escolher determinadas pessoas para cuidar da
situação naquele momento.”
Como o massacre ocorreu um dia antes de a população escolher
prefeito e vereadores para o próximo mandato, o número oficial de mortos no
massacre do Carandiru só foi revelado uma hora antes do encerramento das
votações. As eleições estavam salvas e a ordem mantida.
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